terça-feira, novembro 21, 2006

Eu entrava na casa e saía. Entrava e saía, entrava e saía. Penso eu que quem me visse devia achar que eu estava dançando bem na entrada da porta. Ora, vejam bem. Que pessoa normal dançaria na porta de uma casa?

Na verdade, eu estava tentando dar o passo perfeito. O dedão do pé direito tinha que bater na mancha da cerâmica descascada. Naquela que tinha a forma de uma borboleta de asas fechadas. Se eu não conseguisse colocar o dedo bem ali, o dia todo estaria perdido. De nada valeria o pão comido em cinco partes. Ou a roupa vestida primeiro pela direita. Tudo, tudo perdido. E aí a minha voz ia gritar. E eu não queria que ela gritasse, porque não gosto de gritos. Por isso eu entrava e saía. Até que o dedão do pé direito bateu na borboleta.

Meu nariz segurou o ar. Coloquei devagar o outro pé do lado do primeiro. Agora tudo tranqüilo. Fiquei um tempo sentindo o chão gelar meus pés. E era bom, porque estava calor. Eu sabia disso. Sabia que dia era (quarta-feira), sabia que horas eram (14h50) e sabia o que eu tinha feito (tinha visto Deus). Sabia mais ainda. Se alguém me perguntasse, eu podia dar a primeira e a segunda resposta. A terceira não. Porque as pessoas ou gostam muito ou gostam nada de quem vê Deus. E uma coisa que eu não sabia era separar quem gostava muito de quem gostava nada de quem vê Deus.

Duas pessoas passaram por mim, mas eu não queria vê-las, por isso não falei com elas. Elas nem ligaram. Acho que não queriam me ver também. Eu fui andando devagar, passando o lado interno do dedo indicador direito pela parede. Isso não era uma brincadeira. Era para marcar o caminho, caso eu me perdesse. Ontem eu vi um animal, uma lesma, eu acho. E foi isso que eu aprendi com ela. E hoje eu vi Deus.

Entrei um pedaço no quarto. Cama no lado direito. Armário de madeira clara no lado esquerdo. Lâmpada queimada em cima do aparador. Poeira na janela. Quadro torto para a esquerda. Era um menino. Em cima do menino, uma mancha azul, outra preta, outra mais azul, uma menos azul um pouquinho, uma vermelha toda. E uns círculos. E Kandinsky embaixo. Tudo certo. Entrei toda.

Sentei na beira da cama. Coloquei as mãos no colo, para poder pensar melhor. E pensei muito longamente no dia que estava passando. Apertei os olhos para poder pensar muito, de uma vez só. Mas a minha cabeça doeu. E eu parei de apertar os olhos. Até ali, eu pensei o dia até as 19h.

3 comentários:

Anônimo disse...

Amada, como assim você viu Deus e não me apresentou pra ele? Tenho tanta coisa pra falar pra ele...

Morta de saudades. Me abandona não, tá? Tiamu.

Anônimo disse...

quê qué isso?1!!? quê qué isso?!!?

Anônimo disse...

Nossa, que descrição linda!!!!! Poética, turbulenta, angustiante e, ao mesmo tempo, bela, envolvente!... Li os textos e entendi a sua "visão de Deus"... Mas uma parte em especial me marcou: "Deus tem mais perguntas que eu"!... Puxa!... Fiquei pensando nisso, também, por muitas horas. E se for este um aspecto trágico de nossa existência? E se Deus tiver mais questões, ainda, que nós, as criaturas?